alcatruz

Alcatruz, s.m. (do Árabe alcaduz). Vaso de barro e modernamente de zinco, que se ata no calabre da nora, e vasa na calha a água que recebe. A. MORAIS SILVA. DICCIONARIO DA LINGUA PORTUGUESA.RIO DE JANEIRO 1889 ............................................................... O Alcatruz declina qualquer responsabilidade pelos postais afixados que apenas comprometem o signatário ...................... postel: hcmota@ci.uc.pt

1.12.16

 

Oiçam, oiçam-nos, oiçam-nus.



Quando eles me contam histórias que nunca contaram a ninguém, percebo que cheguei à tal essência, percebo que fui ao fundo. Quando me contam histórias que nunca contaram a ninguém daquela maneira, pelo menos. Quando deixam de se gabar e se interrogam. Quando fazem uma pausa para eu acabar de lhes anotar as palavras, porque querem que eu registe tudo. Querem que eu escreva tudo, porque esperaram muito tempo por alguém disposto a ouvi-los assim, horas a fio, alguém com todo o tempo do mundo para os ouvir. Talvez seja presunção da minha parte, mas, quando me sento a ouvi-los, sei que antes de mim nunca houve outra pessoa a ouvi-los desta maneira, alguém que não esteve no Ultramar, que não tem outras histórias da guerra para contrapor às deles, só tem ouvidos e papel e uma caneta e tempo, todo o tempo que há, e é esta a minha guerra de África, não devo fidelidade a nenhuma narrativa, somente às impressões que colhi. Percebo que fui ao fundo da história quando os olhos se lhes turvam, mas é uma coisa de escassos segundos, de meio segundo, uma coisa abafada, que só acontece uma vez em cada conversa, uma imagem que lhes perpassa pelo espírito e que os apanha desprevenidos e os sufoca de dor, mas que eles sufocam por sua vez e não permitem que se repita. Percebo que fui ao fundo quando nos olhos deles já não vejo fúria nem vergonha, mesmo ao contarem-me gestos grotescos, coisas obscenas e vis que fizeram ou a que assistiram, quando percebo que eles sublimaram a fúria e a vergonha e me contam os gestos tal e qual os viram, com as cores vivas e sujas do Niassa. E percebo que fui ao fundo da história quando saímos do restaurante ou do café onde entrámos para almoçar e para conversar e vejo que já é noite cerrada, passaram seis ou sete horas. Olho em volta e parece que o lugar se alterou, não reconheço as cercanias, as coisas mudaram  de lugar, aquele muro não estava ali, havia dois cães enroscados a dormir naquele alpendre agora deserto, choveu e está tudo encharcado, há poças de água a brilhar onde antes havia poeira muito fina, o horizonte abriu-se ou fechou-se em torno de mim, dir-se-ia que estive a tombar em queda livre durante imenso tempo, devagar, suavemente, como num sonho, e que, agora que torno a obedecer às leis da gravidade e pouso os pés no chão, dou por mim num lugar novo, completamente diferente. E então, sim, quando me despeço do homem com quem me fui encontrar, aquele homem que te conheceu há já tantos anos, e arranco para Lisboa no escuro da noite, com duas, três, quatro horas de estrada pela frente, sei que fui ao fundo das histórias da guerra de África. Não respondi a nenhuma questão, não resolvi nenhum problema. Fui ao fundo do fundo.
Paulo Faria. Estranha guerra de uso comum. Ítaca 2016
Com autorização da editora
* Um livro excepcional.

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