Alcatruz, s.m. (do Árabe alcaduz). Vaso de barro e modernamente de zinco, que se ata no calabre da nora, e vasa na calha a água que recebe. A. MORAIS SILVA. DICCIONARIO DA LINGUA PORTUGUESA.RIO DE JANEIRO 1889 ............................................................... O Alcatruz declina qualquer responsabilidade pelos postais afixados que apenas comprometem o signatário ...................... postel: hcmota@ci.uc.pt
Reunião de curso
Reunião do curso médico 1954-60 da UC. Nascemos antes da guerra de Espanha e crescemos com o racionamento e o medo da II Grande Guerra; no auge do Estado Novo: Quem vive? Portugal; Quem manda? Salazar, Salazar. Lá íamos.
Vivemos na Guerra Fria só sabendo do “inimigo” o que a cartilha oficial dizia: “o Comunismo, na sua fúria destruidora não distingue o bem do mal, o justo do injusto…”; também sabíamos pouco dos nossos aliados. Vivíamos “orgulhosamente sós”. A epopeia cubana de Fidel eclipsou a decepção russa; o mito era o Che.
Fizemos a instrução primária com exame da quarta classe e o de admissão aos liceus; ali havia provas nacionais no segundo, quinto e sétimo ano. Depois, admissão à Universidade com o curso (os que havia) à escolha dos que podiam e futuro assegurado para os licenciados.
Em Coimbra, a Universidade (“mãe e madrasta”) e os amigos e as opções para a vida. A Académica (a Associação e os organismos autónomos) como universidade paralela. A grande mobilização académica contra o DL 40900, em defesa da autonomia da Associação Acadé
mica. Da centena de colegas só um tinha carro e três ou quatro Vespas. Assistimos ao nascimento da TV e dos satélites artificiais; não havia telemóveis nem ecografia.
O curso deu nove Professores universitários (quatro em Lisboa, três em Coimbra e um no Porto e outro em Luanda) e alguns mestres, a melhor guitarra de então, alguns cantores, o introdutor da micro cirurgia e da cirurgia experimental em Coimbra, os melhores “versos do livro de Curso” de Coimbra (Pegou Jeová num homem são/ E bastante lhe custou a encontrar…), o mais brilhante de todos nós - primeiro lugar no concurso nacional de psiquiatria, o criador do Museu Académico, o do museu da Lousã, um etnólogo musical, o vocalista da Tuna, um pintor, o autor do manifesto da “Carta a uma jovem portuguesa” – que agora nos parece inócua mas que, na altura foi uma pedrada no charco, um director de jornal, um presidente da Câmara, um Governador Civil. Um preso e alguns pesos políticos de antes e depois da Abril.
A candidatura de Humberto Delgado polarização muitos; enquanto uns iam prestar vassalagem ao pretendente ao trono, a militância de outros levou um ao forte de Peniche. Uns apoiavam outros detestavam; a maioria hesitava ou abstinha-se. Como sempre, os mais requintados adoptaram posições radicais – um chegou a fazer propaganda sindical entre os operários da fábrica do pai.
O único curso cuja viagem de quinto ano (a Itália) aconteceu no sexto e o único que não foi acompanhado por um Prof. Só então começámos a tratar as colegas por tu. O reconhecimento da liberdade de expressão e de associação na Europa; notícias da revolta em Angola. O assalto ao Santa Maria.
A guerra de África para onde fomos todos; uns dum lado, outros do outro. O que mais nos inquietava era imaginar que, do outro lado, lutando contra “nós”, estivesse um condiscípulo de seis anos de convívio – o Videira, o Boal, o… Estávamos em África quando quase rebentou a III guerra mundial durante a crise dos mísseis russos em Cuba; ainda lá estávamos quando assassinaram Kennedy, o fim de outro mito.
A prova de fogo africana de recém licenciados inexperientes; médicos que os chefes militares exigiam ter a seu lado (um por 200 militares) e que tentavam usar como isco na estratégia Psico-social junto das populações locais. Em África onde nos surpreeendeu “a obra que o português criou”, a qualidade das instituições sanitárias coloniais já desorganizadas pela guerra – a luta contra a mosca tsé-tsé, contra a lepra, a concepção exemplar dos pequenos hospitais (hospitel como o da Muxima) com médico e enfermeiro, laboratório com “microscopista” treinados para pesquiza de plasmódio, um motel em vez de enfermaria (pequenas cubatas de tijolo para toda a família). Onde nos surpreenderam as boas-vindas com que o exército foi acolhido nas sanzalas. "Agora que já está tropa e é bom, já vai melhor; mas primeiro era ruim tempo. O chefe de posto costumava mandar apanhar cabras e galinhas pelos cipaios e quando o dono ia no posto pedir dinheiro pagava 15$00 por cabra e 2$50 por galinha. Se o dono recusava preço então toca de levar porrada no focinho e puta que pariu todos os chefes de posto.”
Mais tarde, o 26 de Abril criou brechas entre muitos; hoje mantemos as crenças mas sorrimos das ilusões. Fomos a geração que criou o SNS e se preocupa com o futuro.
Todos temos mais de 70 anos. Cada vez somos menos; este ano morreram quatro, entre os quais o mais novo. R.I.P.
Somos gatos velhos que se reencontram uma vez por ano.